Pés sujos (Um conto)

Reproduzo a seguir, na íntegra um texto do Prof. Igor Miguel intitulado Pés sujos.
Um conto maravilhoso na forma de expressar uma triste realidade. Um retrato bem feito, mas uma foto já embotada, infelizmente.

Digo embotada, porque não é de hoje que nos deparamos com as mais diversas mazelas ao nosso redor e, muitas vezes, não assumimos nosso papel como Sal e Luz.


Por Igor Miguel

Um menino passou correndo com seus pés preto de um chão cheio de fuligem da poluição. O chão ao menos é sujo, quanto ao coração do menino, bem pode ser que seja límpido.

La vai ele, como corre, olha para um lado e para o outro, ante o frenético movimento dos carros barulhentos. Ansioso, cruza a rua, uma motocicleta quase o pega, o motoqueiro buzina estridentemente.

Ele chega. Pega sua caixa de papelão cortada e adaptada com um pedaço de arame, faz uma caixa onde organiza de forma atraente doces e pastilhas de hortelã. A caixa me parece de sabão em pó.

Com a mesma agilidade, ao sinal vermelho, percorre os carros, exibindo seu mostruário, carro após carro, contando com a sensibilidade e o interesse dos motoristas por suas balas baratas, mas gostosas, como dizia.

Um "sim" aqui, moedas ali, mais "não" do que "sim", acaba vendendo mais do que se esperava. Em sua bermuda, um tanto surrada e suja, em um bolso mole, sambam pratinhas aos montes.

Se orgulha de seu lucro, exibia para seu amigo malabarista. La vai ele!

Corre, põe a caixa na cabeça e de novo, de pé ainda mais sujo, volta para o lado de cá, cruza os carros, para por onde os pedestres se concentram. Eles se afastam, olham-no com uma visão precavida, damas seguram firme suas bolsas. Ele vai rindo, como debochando e assumindo o poder que lhe atribuíam.

Chega em sua casa, com porta de MDF velha. Mitico, uma vira-lata de pelo branco e um "tapa-olho", um verdadeiro pirata, pula de alegria. Ele brinca e ri e ouve uma voz enfurecida de dentro de casa... era o namorado de sua mãe.

Correu, olhou e lá estava ele. Com olhos avermelhados, trôpego, macho, violento, valente e bêbado. Olhou para o menino, carregado de raiva, gritando, dando ordens, para que desse o dinheiro das balas. O menino o encarou colocando a mão no bolso e disse não. Pois o dinheiro era para o remédio da mãe.

Sua mãe padecia em leito, cirrose hepática, sofria as agruras de estar à margem da sociedade. Ele, o pequeno jovem dos pés sujos, a defende como um grande homem, mas o namorado de sua mãe insiste e sugere um espancamento. Lhe defere um golpe, mas ele reage, vira-se como um gato e consegue escapar. O homem lhe segue pra fora e lá, ao cruzar a rua, o menino vê um ônibus e grita para o homem tomar cuidado, mas seu berro não chegou ao cérebro do bêbado a tempo por efeito letárgico do álcool.

Mitico late sobre o corpo ensanguentado. Os outros moradores do condomínio, como chamavam o emaranhado de barracos debaixo do viaduto, chegam-se como curiosos ante a cena do menino que chora.

Não o odiava a este ponto, pensara na possibilidade de tê-lo por pai. Sentia um misto de pena e culpa. Sua mãe, grita se apoiando na parede de concreto, em prantos, acusava o menino, perguntando o que fez.

O menino chorava e corria, corria muito. Correu tanto que perdeu o caminho de casa, perdeu-se entre as pedras da cidade, perdeu-se entre os muros e o cheiro de urina das marquises. Perdeu-se no tempo e no espaço, foi absorvido, pelos olhares que o ignoravam. Perdeu-se ante os vidros fechados dos carros sob o hálito do ar condicionado levando meninos bem arrumados indo pra escola. Perdeu-se de casa, perdeu-se na vida sombria. Perdeu-se na impureza de seus pés sujos. Virou fuligem...

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Cristão Protestante. Graduado em Tecnologia em Processamento de Dados pela FATEC (Unesp). Hoje trabalho como consultor em negócios imobiliários. Pós-graduado em Especialização em Estudos Teológicos, pela Mackenzie (CPAJ). Falo Inglês muito bem e espanhol porcamente. Sou muito bem casado e tenho dois filhos maravilhosos.

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